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Rondônia, quarta, 12 de fevereiro de 2025.

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Os relógios

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O rapaz se senta à minha frente para um atendimento jurídico inicial e já se desculpa porque não sabe o que pedir. No meio do barulhinho das senhas dos tantos agendamentos, ele quer saber o que fazer pelo casal de vizinhos idosos quando for preciso fazer alguma coisa.

Faz alguns meses que Dona Iranilde tocou a campainha do moço três vezes no dia para oferecer o mesmo bolo e dizer a mesma coisa sobre a conta de luz. Depois, Seu Tião começou a embaralhar e borrar as décadas. Este moço vizinho ouve brigas emocionadas, ela esqueceu o fogão aceso e ele esqueceu como compraram juntos o fogão no carnê 20 anos atrás e o trouxeram amarrado sobre o Uno.

Pergunto se há filhos. Ele diz que, segundo Dona Iranilde, moram em outro estado e não vêm há vários Natais. Para Seu Tião, devem estar presos há anos. Ela se exalta descrevendo a neta que conheceram na praia com o laço de bolinhas amarelas no cabelo, a rua de pedrinhas, a festa junina. Ele dá bronca que ela está jogando sal no arroz pela quarta vez.

Com o relógio dos lapsos invertido, eles chegaram até aqui juntos, mas estão perdendo o testemunho um do outro sobre o passado e o dia a dia. Se ele se despede para comprar margarina, minutos depois ela inspeciona o pote vazio e faz perguntas ao silêncio. Se ela quer relembrar o parto que quase foi no trânsito, ele diz que é fantasia, e ela chora, mas talvez daqui a pouco esqueça essa briga.

Ofereço ao vizinho encaminhamentos possíveis, que não vão impedir que em algum momento Seu Tião tenha de lembrar Dona Iranilde de tomar banho e comer, sem ter muita certeza de como essa senhora entrou na sua vida. Saudosa, ela fala do cachorro que tiveram na época do quintalzinho cheio de barro, e ele, afastando o pavor de começar também a esquecer junto com ela o almoço e o remédio e o endereço, ensaia outra cumplicidade: uma graça aquele bichinho.
Leia mais (12/19/2021 – 21h30)

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